A piada do separatismo

Roberto Pompeu de Toledo


J
á que o Brasil, como se sabe, é um país do Leste Europeu, mais dia, menos dia tínhamos mesmo que enfretar essa desgraça – a eclosão da questão das nacionalidades. Afinal, que têm a ver os baiano-korobovskis, do Norte, sabidamente mulçumanos, embora às vezes disfarçados de adoradores de mães-de-santo, com , digamos, os paraneslavos de Kuritibogrado, do Sul, cristãos de rito ortodoxo-grego? E as diferenças de língua, então? Como pode se entender um país que abriga desde os piauivskos de Teresinisburg, um povo que fala um idioma singular, só aparentado, e mesmo assim vagamente, com o húngaro, o finlandês, o vogul e o ostiak, até as minorias étnicas do Gauchistão, com seus dialetos próximos do turco, quando não do persa, e sua escrita que emprega do alfabeto árabe aos hieróglifos egípicios ?

Mais dia, menos dia tínhamos mesmo que enfrentar o problema, e eis então que surge no país, como já surgira na Iugoslávia, ao som de bombas, e na União Soviética, ao embalo da infelicidade de Mikhail Gorbachev, a desgraça do separatismo. Um instituto de opinião chamado Bonilha, de Curitiba, fez uma pesquisa mostrando que 41% dos sulistas gostariam de se separar do Norte. O assunto começou a fazer sua aparição em rodas de políticos, acadêmicos, empresários e assimilados. Editorialistas de jornal, com a pompa e a circunspecção que caracterizam a raça, chamaram a questão de ‘‘delicada’’ e nos convidaram à reflexão.

Delicada o quê, cara pálida? A questão seria delicada se não fosse ridícula. Achar que o separatismo tem um mínimo de seriedade, no Brasil, é tão absurdo quando imaginar que ficamos nos Balcãs, ou nas franjas da Eurásia, e portanto estamos no mesmo barco dos povos que se desagregam junto com o poder comunista.

Na verdade, para ser pomposo e circunspecto como um editorialista de jornal, se há alguma coisa que deu certo no Brasil foi a unidade nacional. Muitas outras deram errado, do atraso na industrialização à distribuição de renda. Na construção da nacionalidade, ao contrário, uma série de audácias e outros tantos golpes de sorte acabaram por assegurar, ao longo da História brasileira, primeiro um amplo espaço, com fronteiras consolidadas, e, segundo, a inserção, aí dentro, de uma ponta a outra dessa vastidão continental, de um povo que fala a mesma língua e tem mais ou menos a mesma cabeça. Inventar que existe uma questão nacional, no Brasil, ou de peculiaridades regionais que justificariam o separatismo, só pode ser piada.

Se é piada, por que o assunto mereceu a atenção de editorialistas e institutos de opinião? Simples.

Quanto aos editorialistas – ou raças próximas, como a dos cientistas políticos – o problema é que vivem de inventar teorias. Então, criaram uma segundo a qual o que se observa no Leste Europeu é uma tendência universal. Se há a questão dos sérvios contra os croatas, por que não haveria a dos alagoanos contra os sergipanos? E se há, ente armênios e azerbaijanos, o problema de Nagorno-Karabakh, de maioria armênia, mas dentro do territorio do Azerbaijão, por que não supor que, entre São Paulo e a Paraíba, não haveria o problema do bairro do Brás, incrustada na capital paulista mas de ampla população nordestina, feiras como a de Caruaru e cheiro de azeite-de-dendê no ar?

Quanto aos institutos de opinião, a questão é que sofrem de falta de assunto, nas entressafras das campanhas eleitorais. Então, fazer o quê ? Houve um que recentemente incluiu, entre as opções que apresentava aos consultados, a de ‘‘eliminar o presidente’’. Eliminar! Observe-se que o respeito às instituições e, mesmo, ao Código Penal. Claro que uma boa porcentagem de gente cravou sim, assim como, na pesquisa do Bonilha, cravou no separatismo. Em tempos de penúria e baixo-astral, vale tudo. Caso se apresentasse a opção ‘‘eliminar a mãe’’, certamente também seria bem votada. E se em vez de se perguntar se o gaúcho queira se separar do Nordeste, ou o cearense do Sul, se perguntasse se os pesquisadores de opinião deveriam ser confinados na Sibéria, é possivel que a alternativa atraísse muita gente.

Antes que se esqueça, e para encerrar o assunto: o problema do Brasil é que ele já está separado. Não horizontalmente, mas verticalmente. O que existe não é um país de uma lado e outro de outro, e sim um embaixo e outro em cima. A Bélgica e a India. Eles não se distribuem em fronteiras definidas no mapa, como as repúblicas soviéticas, mas se interpenetram. As vezes, um cidadão é vizinho do outro, mas um mundo os separa.

Em outras palavras, o problema do Brasil é o apartheid. Este, sim, valeria a pena enfrentar. Seria uma briga para unir o país, não para separar.

--artigo de 1991--